Terra de ninguém

#Conto

1915

Faltam dois minutos para as três da manhã e esse é exatamente o tempo que falta para a missão de um pequeno pelotão de espionagem composto de seis soldados, sendo eu um deles, começar. Já passei por alguns apertos, inclusive já levei um tiro, mas foi de raspão. Na verdade o tiro foi tão superficial que nem se quer ganhei um dia de descanso. O que quero dizer com isso é que já passei por poucas e boas e em todos esses momentos eu estava com medo, mas dessa vez, não estou só com medo, estou aterrorizado.

A minha missão é, sair das nossas trincheiras e avançar pela terra de ninguém o máximo que puder, espionar e se possível sabotar as trincheiras inimigas. A missão é simples, mas nenhum pouco fácil. Nesse momento, como os outros cinco, estou espiando a terra de ninguém a cada dois segundos e sempre que olho vejo luzes espalhadas apagando e acendendo em lugares diferentes.

Se você não sabe o que é a terra de ninguém, não se preocupe. Isso é rápido e fácil de explicar. Terra de ninguém é o espaço que existe entre as nossas trincheiras e as do inimigo e tem esse nome por que não pertence a ninguém, exceto aos corpos que ali se aventuraram. Esse é o lugar onde muitos morrem para que poucos sobrevivam.

Quanto às luzes que se acendem e apagam de minuto em minuto iluminando lugares diferentes. A energia elétrica é algo raro no campo de batalha, portanto limitada. Eles iluminam rapidamente o local e se não avistarem ninguém, apagam e miram em outro. Então a minha missão basicamente se trata de sorte para que a luz não caia sobre a minha cabeça se não em seguida, balas caíram.

Olhando para o relógio e forçando muito os olhos vejo que faltam apenas alguns segundos para o início da missão. Os meus colegas estão rezando, ou completando as suas manias para lhes dar boa sorte. Eu já rezei e fiz as minhas. Na guerra você pega muitas delas, qualquer coisa para lhe dar mais alguns dias de vida. Então olho para o sargento e vejo os sinais, a missão foi iniciada.

Todos, rapidamente e de forma sincronizada, olham para a terra de ninguém. Observam onde as luzes estão e então saímos correndo o máximo possível. Então as luzes se apagam. Essa é a hora que você se joga no chão e tenta se misturar em meio a lama, grama e corpos. Eu olho a minha volta, mas não vejo nada. Eram três da manhã e estava um breu completo, naquela madrugada nem as estrelas quiseram se mostrar. Ou elas podiam estar com vergonha do que estavam vendo. Homens se matando aos milhares e para que? Eu sinceramente só queria voltar para casa, para minha família.

As luzes se acenderam. Graças a Deus, nenhuma delas foi perto de mim e pelo silêncio todos os meus colegas deram a mesma sorte. Então me levanto um pouco e saio correndo agachado. Novamente as luzes se apagam e eu me jogo no chão. Eu não fazia a menor ideia de onde os meus colegas estavam. Tudo o que conseguia ver eram silhuetas escuras. A terra estava bem úmida, tornando a madrugada mais fria. A única parte boa de estar com o rosto praticamente enfiado na terra é que quase não sinto o cheiro de carne podre, apenas o da terra e grama molhada.

Então o ritual retorna, as luzes se acendem, mas dessa vez eu não me mexi. Eu vi alguém se movendo na minha direção, um vulto. Estava muito escuro e tudo o que vi foi uma sombra no formato de homem. Será que é um colega recuando ou um inimigo avançando?

Sem a certeza de que era um amigo, preferi me arrastar para o mais longe possível do lugar onde o vi se jogando no chão. Quando as luzes voltaram a ligar eu continuei parado. Fiquei apenas observando tudo a minha volta, mas não vi ninguém se mexendo. Os únicos sons que se podia ouvir era o do vento que fazia as folhas chacoalharem. Alguns grilos e cigarras. E bem ao longe o barulho dos grandes holofotes apagando e acendendo.

De dia, enquanto olhava para a terra de ninguém, eu não podia conceber como duas tropas inimigas podiam ficar a mais ou menos um quilômetro de distância da outra de forma tão pacífica. Estávamos a semanas ali, parados um de frente para o outro fazendo apenas investidas de noite, como essa que estou fazendo. Mas agora eu entendo. A missão começou a vinte e cinco minutos e devo ter andado uns cem metros. Isso quer dizer que ainda me restam mais outros novecentos. Eu estou exausto! Ficar parado, deitado nesse chão úmido, rezando para que se o inimigo passar do meu lado, que eu o note antes.

Em momento algum, enquanto via os outros sendo obrigados a fazerem essa mesma missão, eu pensei que era fácil ou menosprezei a sua importância. Mas agora vejo que no fundo eu subestimei os requisitos para cumpri-la. Não é preciso apenas coragem. É preciso também ter sangue frio. Ser capaz de controlar o medo e não o contrário. Tudo o que mais quero é voltar e dizer que não fui capaz de avançar mais do que cem metros. Mas se eu fizer isso serei mandado de novo no dia seguinte ou serei transferido para a frente da batalha. Portanto o melhor que posso fazer é tentar arrumar alguma informação. Qualquer uma.

As luzes se acenderam e apagaram mais duas vezes sem que eu visse nada de estranho. Enquanto me preparava mentalmente para avançar no próximo momento de escuridão um único disparo quebrou o silêncio. Eu olhei para todos os lados, mas tudo o que vi foram as luzes ligando e desligando de forma frenética.

Eu avancei quase duzentos metros a mais e parei do lado de uma árvore muito grande e me escondi no meio das suas raízes que eram grandes o suficiente para que eu sumisse por entre elas. Enquanto tentava fazer as minhas mãos pararem de tremer eu ouvi um barulho de metal batendo. Na mesma hora eu parei de me mexer, quase prendi a respiração também. Quando ouvi o barulho de novo eu o reconheci. Era o de um cantil de água, batendo. Eu tinha certeza disso. Me esgueirei por entre as raízes, lentamente me aproximando do local do barulho. Quando vi uma silhueta eu parei. Droga, como estava escuro! Isso me irritava profundamente. Mas não havia nada que eu podia fazer, então peguei a minha pistola e mirei nele. Fiquei esperando pelas luzes, mas quando apareceram o local onde o homem estava se tornou mais escuro.

O nosso exército possuía um assobio, para nos localizarmos e também para nos identificar. Eu já estava com ele na mira, se ele demorasse mais de um segundo para responder ou se fizesse algum movimento brusco, era só atirar. Aquela distância não tinha como errar, portanto foi o que fiz.

Respirei fundo e fiz o assobio e rapidamente o homem retribuiu o som. Era um amigo! Guardei a pistola e me aproximei o mais rápido possível. Assim que coloquei a mão em seu ombro uma luz acendeu por perto, mas não o suficiente para entregar a nossa posição, mas pude ver o rosto do meu colega, eu não o reconheci, mas o uniforme não era nosso! Aquele homem não era um amigo, e a facada que ele me acertou na barriga tirou todas as minhas dúvidas! Eu segurei a sua mão que já estava coberta pelo meu sangue e com a outra lhe dei um soco na garganta. Ele deu alguns passos para trás e caiu no chão ao tropeçar em uma das raízes.

Eu tentei sacar a minha pistola, mas as minhas mãos não paravam de tremer. O homem de endireitou rapidamente e logo sacou a sua arma e quando mirou em mim uma rápida chuva de balas o perfurou em vários pontos. Em apenas alguns segundos ele estava morto no chão e eu vivo, sem ter feito nada.

Fiquei ali mais alguns minutos tentando parar o sangramento e me recuperar do susto. Acho que isso demorou mais ou menos uma hora. Eu não havia chegado nem na metade do caminho e já estava ferido. Com certeza não chegaria ao outro lado e mesmo que conseguisse não sobreviveria a volta. Eu já não tinha mais dúvidas, eu precisava voltar e enquanto reunia coragem eu notei uma coisa. A chuva de balas que matou o homem que quase me matou veio da direção dos inimigos. Eles mataram um amigo! E nem se quer perceberam, acho eu.

Então aos poucos eu fui retornando. Faltava uma hora para o sol nascer quando retornei. Eu pude ver o olhar de surpresa de alguns e desaprovação de outros. E eu sabia o por que. Enquanto falava com o sargento as minhas conclusões se mostraram corretas. Ninguém daquele pequeno pelotão havia voltado, apenas eu. Alguns deviam estar pensando que eu era um covarde que ficou deitado o tempo inteiro, se esfaqueou no final da madrugada e voltou. O sargento era um desses.

Ele me perguntou se eu havia descoberto alguma informação útil. Eu já estava para dizer que não quando lembrei que na verdade eu tinha.

– Os soldados inimigos conhecem o nosso assobio de identificação, senhor!

Mais uma vez os olhares de surpresa. Depois desse dia eu fui forçado a voltar para a cidade mais próxima, pois a minha ferida infeccionou. Mas isso foi algo bom, pois durante o resto da guerra eu fiquei servindo apenas como um guarda de cidade. No final da guerra recebi uma medalha por bravura. Eu não merecia, afinal de contas não fiz nada de mais, mas tudo o que eu queria era voltar para casa.



A Arte da Guerra – Sun Tzu – Edição de Luxo Almofadada

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